Onde a burocracia encontra a violência
A utopia das regras, de David Graeber, mostra como a burocracia está nos filmes, nos livros, nas portarias dos prédios e dentro das nossas cabeças
Vivemos em tempos cada vez mais burocráticos. E a melhor resposta que já vi ao tormento crescente da burocracia foi a do antropólogo David Graeber, que escreveu, A utopia das regras, seu livro sobre o tema.
No mundo burocrático, até os heróis de livros e filmes são burocratas. “Eles têm, desde o fim do fim do século XIX, chegado na forma de um infinito estoque de detetives míticos, policiais e espiões – todos, significativamente, figuras cujo trabalho é operar onde as estruturas burocráticas para organizar a informação encontram a aplicação de violência física.” Algumas dessas histórias têm um tempero conservador que, depois de ser muito ingerido, parece até normal: os vilões são cientistas hiper-criativos (mas loucos) que invariavelmente decidem dominar o mundo. Eles têm que ser detidos por heróis – geralmente homens brancos do interior ou herdeiros entediados que gostam de morcegos – ou fabricantes de armas.
Para Graeber, o tema central dos primeiros universos de super-heróis é justamente o perigo da imaginação humana. O link aqui é com o Id x Superego, de Sigmund Freud. A racionalidade à Freud, serviria para conter os impulsos, ao contrario da racionalidade à David Hume, “escrava das paixões”, que serviria para atendê-los.
A burocracia se tornou tão rotineira que não reparamos mais quando a vemos. E, às vezes, ela é acompanhada por uma ameaça quase trivial de violência, como quando temos que mostrar a identidade e pegar um crachá para passar pelos seguranças que guardam a entrada de um prédio. Sempre que alguém defende a liberalização de alguma coisa (muitas vezes com um discurso anti-burocracia) toda uma estrutura burocrática acaba sendo criada para organizar o comércio liberalizado ou o acesso ao país ou ao prédio onde a nova política foi adotada.
O conflito entre criatividade e burocracia é um dos principais temas do livro – que descreve duas formas opostas de utopia: “por um lado temos um anti-autoritarismo que, com sua ênfase em criatividade e improvisação, vê a liberdade basicamente em termos de brincadeira, enquanto de outro, um tácito republicanismo vê a liberdade como a habilidade de reduzir todas as formas de poder a um conjunto de regras claras e transparentes.”
A intenção não é ruim: pode ser só organizar os processos ou evitar o poder arbitrário, mas o resultado prático da noção burocratizada de liberdade é nos empurrar para um mundo onde a brincadeira vai sendo eliminada – ou, como diz Graeber, encaixotada em algum lugar distante, longe de qualquer empreendimento humano com consequências – enquanto as partes mais importantes da vida vão sendo reduzidas a uma espécie complexa de jogo definido por regras. E não falta apelo a essa ideia. “Quem já não sonhou com um mundo onde todos conhecem as regras, todos jogam de acordo com as regras e – mais ainda – onde as pessoas que jogam de acordo com as regras podem realmente ganhar? O problema é que isso é uma fantasia utópica da mesma forma que um mundo de brincadeira livre e absoluta seria.”
Com frequência, as regras do processo burocrático favorecem um grupo (às vezes um grupo étnico). Muitas vezes elas são contraditórias ou tão complexas que o encarregado de aplicá-las passa a ter um poder enorme. “No mundo real”, diz Graeber, “todos esses desvios do princípio burocrático [da impessoalidade] são sentidos como abusos. Em mundos de fantasia, eles são experimentados como virtudes”. Não é difícil lembrar do maverck cop, o policial justiceiro dos filmes americanos, e de como ele pode ser assustador no mundo real.
No cenário burocrático, segundo Graeber, a burocracia acaba sendo usada por uma pequena parte da população para extrair recursos das outras pessoas e a busca por escapar do poder arbitrário acaba produzindo mais poder arbitrário: “guardas armados e câmeras de vigilância aparecem em toda parte, ciência e criatividade são suavizadas e todos nós acabamos passando partes crescentes de nossos dias preenchendo formulários”.
Não é uma visão otimista, mas me ajudou a ver processos burocráticos onde antes eu não via e a tentar resistir ao impulso de preencher os formulários do dia antes de escrever posts para este blog. A ciência suavizada do parágrafo anterior tem a ver com a burocracia crescente a que os pesquisadores são submetidos e aos critérios de performance do mundo acadêmico – capazes de esgotar o estudante mais entusiasmado antes que ele tenha tempo de se aprofundar nos temas que quer conhecer.
Graeber, que morreu em 2020, ficou famoso por criar a frase “Nós somos os 99%” durante o movimento Occupy Wall Street. Ele é um dos autores do recém lançado O despertar de tudo e teve uma produção bibliográfica extensa, que inclui outro texto famoso, sobre empregos sem sentido. Seu livro sobre burocracia, A utopia das regras, foi publicado nos EUA em 2015 e ainda não tem edição no Brasil.