O eterno retorno dos zumbis econômicos
Livro mostra as teorias econômicas já refutadas que se recusam a morrer, que continuam circulando pelas colunas de jornal como se estivessem certas
As primeiras ideias zumbis (ou, pelo menos, as primeiras a receber esse nome) têm a ver com projeções exageradas para o crescimento dos gastos com saúde. As ideias foram refutadas (ou mortas) mais uma vez no artigo Lies, damned lies and health care zombies: discredited ideas that will not die, de Morris Barer, Robert Evans, Clyde Hertzman e Mira Johri, publicado em 1998.
A expressão ideias zumbis foi popularizada pelo Nobel de economia Paul Krugman, mas ganhou sua melhor versão no livro Zombie economics, do economista australiano John Quiggin.
O quadro pintado por Quiggin é assustador: estamos cercados por zumbis. Vários deles pareciam ter morrido de vez na crise de 2008. Mas não: como bons zumbis, eles voltam.
A lista de ideias zumbis no livro de Quiggin é longa mas duas merecem destaque pelo estrago que ajudaram a causar. Elas foram usadas nas últimas décadas para atacar a administração pública e transferir poder do Estado para os bancos. São a Teoria das expectativas racionais e a Hipótese dos mercados eficientes.
As duas ideias (nunca provadas, muitas vezes refutadas) estão por trás do credo de que o mercado financeiro é o melhor agente possível para dizer o preço dos ativos e para alocar os recursos da economia: ele é eficiente, bem informado e motivado para lucrar com a boa alocação do dinheiro alheio.
Mas, segundo essas duas teorias, bolhas em preços como os de imóveis, ações e afins são simplesmente impossíveis, afinal, o mercado sempre determina os preços de forma eficiente e usando toda a informação disponível…
Para uma boa descrição de como os bancos decidem o que fazer com o dinheiro dos clientes, o grande clássico é o livro Liar’s Poker, em que o então jovem economista Michael Lewis descreve como funcionava um dos grandes bancos de Nova York, onde trabalhou. O banco, o Salomon Brothers, acabou quebrando, assim como o Lehman Brothers e tantos outros bons precificadores de ativos e alocadores eficientes de capital.
Um dos zumbis que mais me impressionaram no livro foi o zumbi privatista. Quiggin não é enfaticamente contra qualquer tipo de privatização. Ele diz que há casos em que pode valer a pena vender uma empresa pública, mas faz contas para mostrar que, em muitos casos, a privatização não faz sentido.
Por que, em tantos anos estudando economia, ninguém me mostrou essas contas?! São contas simples. A ideia é que comprar empresas ou ações de empresas envolve risco. Quem compra a empresa tem uma projeção para suas receitas futuras e traz essa projeção a valores de hoje usando uma taxa de juros alta – que o recompense pelo risco.
Já o Estado, que tem receitas de impostos e, no limite, pode imprimir dinheiro, capta empréstimos com risco (e juros) mais baixos que os do mercado de ações. Quiggin dá exemplos e é bem didático mas, resumindo, o que ele diz é que, quando vende uma empresa, o Estado abre mão da receita futura dessa empresa. E, se usar o que recebe pela venda da empresa para reduzir a dívida pública, o que vai economizar em pagamento de juros no futuro será um valor menor que o que receberia de lucro da empresa se ela ainda fosse estatal (pois ela foi vendida por um preço que descontou sua receita futura a uma taxa maior que a da dívida pública).
E, se o efeito da privatização for aumentar o preço do que a empresa vende, então a venda da empresa só terá empurrado a conta para os consumidores (de preferência a conta de um serviço com monopólio natural como energia elétrica ou água tratada). A privatização cria vários problemas regulatórios, já que muitas estatais foram criadas para lidar com questões como monopólio natural e ganhos crescentes de escala (que levam à formação de monopólios).
A mania privatista começou na Inglaterra thathcerista e se espalhou pelo mundo nos anos 80 e 90. Ela nunca teve nenhuma fundamentação teórica além do discurso dos mercados eficientes e dos preconceitos da Escola da escolha pública, da extrema direita dos EUA. Mas, no Brasil, ainda há quem a defenda.
Tenho uma teoria conspiratória particular sobre isso. Acho que a defesa das privatizações tem a ver com a concentração de renda. Com o 1% no topo da pirâmide recebendo uma parte gigantesca da renda do país, esse grupo passa a ter um problema: o que fazer com todo esse dinheiro? Não há como consumir tantos bilhões e a alternativa de comprar os ativos disponíveis no mercado (apartamentos, ações etc.) já inflou bastante o preço de todos eles.
A solução para transformar o estoque de dinheiro do 1% mais rico em fluxos futuros de renda (para fazer o dinheiro crescer) é comprar empresas que nem estão a venda, é comprar as empresas públicas. Isso, é claro, está longe de justificar que o governo as venda…
Mas, voltando aos zumbis, Quiggin também escreve bastante sobre falhas de mercado, falhas de informação e vieses cognitivos à Daniel Kahneman. Foi bom ler e lembrar do clássico Market for lemons, de George Akerlof. No artigo que lhe rendeu o Nobel de economia, Akerlof explica como os carros usados ruins expulsam os bons do mercado. É um problema de assimetria de informação entre o vendedor (que conhece o carro e seus defeitos) e o comprador (que não tem como avaliá-los antes de comprar o carro). Os arautos da eficiência dos mercados estudam Akerlof na faculdade mas, por alguma razão, esquecem da existência de assimetrias e falhas de mercado.
PS. A parte sobre recomendar ajustes fiscais contracionistas no meio de recessões (a famosa austeridade expansionista) também está no livro: é uma das ideias zumbis mais assustadoras. Até hoje ela condena muitos países a ter recessões desnecessariamente longas e profundas.
PS2. Supply side economics, Curva de Laffer (ou voodoo economics, como disse um ex-presidente dos EUA) e Trickle-down economics (a ideia de que dar mais dinheiro ou cobrar menos impostos dos ricos os fará criar empregos para os pobres) também estão na lista das ideias refutadas que continuam sendo repetidas. Vi vários integrantes do antigo Ministério da economia (encerrado há menos de três meses!) defenderem o tal Supply side com entusiasmo.
Os zumbis continuam a solta – e continuam comendo cérebros.