De vota ao (início do) século XX
Nova biografia de Keynes mostra como saímos do irrealismo liberal, criamos políticas eficazes contra recessões e depois voltamos ao delírio pré-keynesiano
Bem antes de inventar a Macroeconomia, John Maynard Keynes cultivou sua fama de profeta publicando As conseqüências econômicas da paz, seu primeiro livro realmente famoso. No livro, publicado em 1919, ele atacou as decisões tomadas pelos vencedores depois do fim da Primeira Guerra Mundial e previu que elas levariam a uma crise econômica descomunal e a um novo conflito.
Ao longo das décadas seguintes, Keynes manteria o hábito assustador de estar certo o tempo todo. Ele continuou atacando políticas erradas de governos – como a decisão da Inglaterra de fixar o preço da libra em ouro (à mesma taxa de antes da guerra). Nesse caso a crítica, publicada em jornais, foi reunida no livro As conseqüências econômicas de Mr.Churchill, em um ataque direto ao ministro da economia inglês da época (que, apesar da crítica, acabou virando primeiro ministro).
A crise econômica que veio em seguida, a Grande Depressão, foi o melhor momento da carreira intelectual de Keynes: o livro que escreveu a partir dela, Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, entrou para a História por lançar um novo ramo da economia (a Macroeconomia) e por apresentar a receita para sair de crises como a que se abateu sobre a maior parte do mundo a partir de 1929.
Alí, Keynes mostrou que o problema nas economias modernas não é de escassez e, em muitos casos, pode ser de falta de demanda. As pessoas podem não ter renda para comprar o que é produzido, ou podem estar assustadas demais – sem emprego ou com medo de perder o emprego – e reduzirem suas compras.
A incerteza sobre o futuro era o centro da nova matéria criada por Keynes para apresentar sua proposta de combate à crise. Segundo Keynes, quando as famílias estão assustadas e as empresas se negam a investir (porque não vão encontrar compradores se aumentarem a produção) é o governo quem tem que estimular a demanda, é ele quem tem que investir e contratar pessoas e serviços para fazer a economia voltar a ter consumo e voltar a crescer. Foi assim que a Crise de 29 foi encerrada.
Nas décadas seguintes, o keynesianismo virou sinônimo de política macroeconômica na maior parte do mundo mas – desde o começo, especialmente nos EUA – a política de Keynes enfrentou ataques (bastante agressivos) de grupos de extrema direita ligados a bancos e a grandes empresas.
Com o keynesianismo, o Estado ganhava importância e os multimilionários tinham seu poder reduzido. Eles então financiaram campanhas para difamar livros didáticos keynesianos adotados em universidades e pagaram faculdades americanas para contratar professores ultraconservadores (o caso mais famoso foi o de Friedrich von Hayek, cujo salário na Universidade de Chicago era pago pelo milionário Harold Luhnow). O monetarismo, a doutrina difundida pelos conservadores, foi criado explicitamente como uma “contra revolução”, para se contrapor às políticas keynesianas.
E, a custa de muito financiamento para eventos conservadores, economistas conservadores, artigos conservadores, revistas conservadoras e afins, o monetarismo foi ganhando espaço na academia (e na política) até virar (nos anos 80 e 90) a política econômica ortodoxa, a teoria econômica padrão nos EUA e na Inglaterra (e, de lá, ser exportado para o resto do mundo).
À incerteza keynesiana, os conservadores de Chicago opunham a Teoria das expectativas racionais a e a Hipótese dos mercados eficientes. Só que as expectativas das pessoas não são sempre racionais e os mercados, com muita frequência, não são eficientes. Políticas criadas a partir dessas hipóteses levaram (previsivelmente) à transferência de ativos do governo para os bancos (privatização) e a recomendações de “austeridade” e redução do papel do Estado na economia. Se os mercados eram eficientes, era a partir deles que os recursos da economia deviam ser alocados. O governo, diziam os novos ortodoxos, só atrapalhava.
Com o ultraliberalismo vieram novas crises econômicas e, em vez da resposta keynesiana às crises, muitos governos (sob pressão de grupos conservadores) impuseram cortes de gastos e outras políticas que aprofundaram ainda mais as crises e empobreceram a população.
Como no início do século XX, a má gestão das crises econômicas deu espaço ao crescimento dos discursos de ódio, ao ataque a bodes expiatórios e à ascensão da extrema direita.
Isso é ainda mais irritante porque já vimos acontecer antes: sabemos quais são as políticas que funcionam para acabar com a estagnação econômica mas não as adotamos. Longe disso. No Brasil, a maioria dos ideólogos do governo passado e dos atuais colunistas de economia nos jornais defende a política ultra-conservadora de cortar gastos no meio das crises.
Economistas keynesianos, como Paul Krugman, já estão cansados de apontar as inconsistências desse tipo de política. O argumento ultraliberal prevê que, aprofundando o buraco recessivo, surgirá uma “fada da confiança” que animará os investidores a pôr seu dinheiro em coisas novas e produtivas.
Não vai acontecer. Os concentradores de renda daqui não vão investir em nada no meio de uma crise, vão aplicar em renda fixa e comprar imóveis (que já existem) para inflar seus preços mais um pouco…
Isso tudo (menos o final sobre Brasil) é uma tentativa de resumir as 540 páginas de O preço da paz, nova biografia de Keynes publicada no fim de 2021 e já traduzida para o português. Com certeza passei longe de falar de tudo que fez de Keynes o economista mais influente do século XX. Mas, em tempos de forte lobby anti-keynesiano no Brasil (a política econômica dos últimos quatro anos foi puro anti-keynesianimo), é sempre bom homenagear o criador da macroeconomia e lembrar que seu livro mais famoso dá destaque para a distribuição de renda como uma condição necessária para superar as grandes crises de demanda que as economias contemporâneas produzem de tempos em tempos.